Caros colegas Virilianos Margarida e Joaquim
Bem-vindos ao debate.
Li atentamente os vossos posts, onde apresentam sucintamente algumas das posições de Paul Virilio, bem como vários dos seus textos.
A fim de iniciarmos a nossa troca de argumentos, seleccionei algumas das frases por vós publicadas, para a elas responder, tentando dissipar um pouco desse pessimismo que destila do pensamento do autor que escolheram representar.
"Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?"
Os Lusíadas, Luis de Camões, Canto IV, 94-97
"Virilio considera que a tecnologia veio transformar o mundo fazendo desaparecer as formas tradicionais de encarar o tempo e o espaço. O problema não está na informação, mas na sua velocidade. Essa velocidade faz com que o presente se torne mais importante que o passado e o futuro, como se só existisse o imediato."
"A velocidade também faz com que a terra fique mais pequena, dando a ilusão de que estamos todos muito mais próximos uns dos outros. Isso pode criar uma sensação de asfixia, como se o espaço tivesse sido reduzido. Finalmente, como a informação circula tão rápido, é como se o que acontece numa ponta do mundo estivesse a acontecer aqui. Isso cria a sensação de um acidente global."
"Outro aspecto importante para Virilio é a destruição dos "tempos locais". (...) O "tempo real" substitui o "espaço real". (...) Este tempo global será igualmente o fim da riqueza da História."
Paul Virilio
Creio que quando Virilio se refere a "tecnologia" se refere às chamadas "Tecnologias de Informação e Comunicação".
Surpreende-me que sua a inquietação surja tão tardiamente no tempo histórico. Com efeito, "a tecnologia que veio transformar o mundo fazendo desaparecer as formas tradicionais de encarar o tempo e o espaço" começou a surgir desde que o homem atingiu o estádio de ser inteligente, nomeadamente com a todas as invenções e aperfeiçoamentos que permitiram a criação e o desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte, quer de pessoas e de mercadorias, quer de ideias.
Assim, e não pretendendo ser exaustivo, temos como exemplos dos primeiros a fala, a escrita, o papiro, o pergaminho, o papel, a tinta, a impressão tanto de caracteres fixos como de caracteres móveis, o livro, a imprensa escrita, o correio a cavalo, a telegrafia sem fios, o rádio, o cinema, a televisão, o telefone fixo e móvel, o telex, o fax, os satélites de comunicação, etc, enquanto dos segundos citemos a roda, a tracção animal, o motor (tema tão caro a Virilio) a vapor e, mais tarde, o motor de explosão, que permitiram substituir a tracção humana e animal pela tracção mecânica, e assim dar origem ao aparecimento de uma enorme diversidade de meios de transporte terrestres, marítimos e aéreos, dos simples carros atrelados e toscas jangadas aos mais recentes, rápidos e confortáveis automóveis, barcos e aviões, constituindo o pináculo deste desenvolvimento a concepção de veículos capazes de levar seres humanos para mundos afastados do nosso planeta, no espaço sideral.
Todos estes resultados do admirável génio humano contribuíram para "fazer desaparecer as formas tradicionais de encarar o tempo e o espaço". Primeiro lentamente, depois de uma forma uniformemente acelerada.
Talvez com a excepção das inovações anteriores aos registos históricos e, como tal, não documentadas, todos estes avanços tecnológicos tiveram os seus detractores e opositores. Todos eles provocaram receios e resistências.
Os exemplos são inúmeros, desde a antiguidade até aos dias de hoje: desde a proibição de aprender a ler e a escrever a todas as classes que se pretendia manter na ignorância a fim de conseguir a eternização no poder, até à proibição em tempos mais recentes do acesso a simples telefones, faxes e fotocopiadoras, como aconteceu num passado muito recente em diversos estados totalitários contemporâneos.
Luis Vaz de Camões foi muito feliz ao descrever os pessimistas, os conservadores e aqueles que não acreditam no sucesso de uma qualquer empresa, com a criação de uma personagem que ficou indelevelmente marcada na consciência nacional, o Velho do Restelo.
As "novas tecnologias" não apareceram no final do séc. XX. Bem pelo contrário. A agricultura foi uma nova tecnologia. A escrita foi uma nova tecnologia. A máquina a vapor foi uma nova tecnologia. A transmissão de mensagens por código Morse foi uma nova tecnologia.
É certo que qualquer inovação encerra riscos, desvantagens e inconvenientes. Tudo aquilo que proporciona benefícios acarreta igualmente incómodos e não poucas vezes prejuízos e danos.
A Humanidade tem consciência disto desde a altura em que as inovações começaram a ocorrer. Não é de agora. Não é recente. Não constitui novidade.
A invenção dos primeiros machados em pedra lascadas possibilitaram o abate de animais destinados à alimentação, mas também foram, seguramente, a arma de homicídios da preciosa e então escassa vida humana.
Como refere Virilio, a invenção do comboio trouxe os descarrilamentos. Acrescento eu: a invenção do automóvel provocou o aparecimento dos acidentes rodoviários, dos atropelamentos e do uso desses veículos com finalidades criminosas e bélicas.
O aparecimento das denominadas TIC desencadeou o surgimento de hackers, crakers, virus, devassa da vida pessoal, roubo de identidades e os mais variados crimes informáticos.
Virilio considera o ciberespaço um espaço de fachada onde a realidade está dividida entre o real e o virtual e sofre acidentes que a podem destruir. Mas não poderíamos considerar da mesma forma a imprensa, a literatura e o cinema? Todos estes meios possibilitam a cada um criar a sua ilusão, a sua falácia, a sua mentira, a sua propaganda. No entanto, devemos deixar de ler um livro ou um jornal e de ir ao cinema?
As questões fundamentais são, para mim, estas: Que balanço faz a Humanidade destas invenções e inovações? De que forma as utiliza? Serão tantas as suas desvantagens e inconvenientes que se sobrepõem aos seus benefícios e, como consequência, os seres humanos devam libertar-se delas?
Creio que se escrutinarmos a vida e a actividade profissional de Virilio encontraremos algumas respostas a estas perguntas. Este autor, enquanto cidadão atento e crítico do seu mundo, é um consumidor activo de informação, logo utiliza e beneficia de toda a tecnologia dos nossos dias. Provavelmente, também não abdica dos meios de comunicação e de transporte que actualmente tem à sua disposição. Estará ele disposto a prescindir de tudo isso? Estará o resto da Humanidade também disposta a dispensar todos estes avanços tecnológicos e voltar à caverna, a exemplo dos jovens japoneses que se encerram no seu quarto e que por isso são quase louvados por Virilio?
Creio que o bom senso, o exercício do espírito crítico e a inteligência serão a resposta a várias destas questões. Penso que reside aqui o pessimismo viriliano. Ele não reconhece às populações, em geral, estas qualidades. Por isso as acha vulneráveis, passíveis de serem enganadas e incapazes de distinguir entre o que vale e não vale a pena na utilização das recentes tecnologias. Sente que não serão capazes de se adaptarem às "novas formas de encarar o tempo e o espaço".
Porém, como tantas vezes tem acontecido ao longo da História, os homens irão provar que, com a sua sabedoria e a sua inteligência, saberão evitar as armadilhas e os inconvenientes que acompanham as tecnologias mais recentes e saberão delas tirar proveito, de forma mais nobre e elevada.
"Paul Virilio, podemos de certa forma dizê-lo, perscrutou o futuro e não gostou do que viu." George Orwell, em 1949, viu o futuro, em 1984. Também não gostou do que viu: um mundo governado de forma totalitária, ditatorial, repressiva, recorrendo a um controlo total da vida dos cidadãos e com um profundo desprezo pelos direitos do indivíduo. Portugal passou igualmente por este pesadelo. Mas a data que amanhã se comemora (25 de Abril) é um perfeito exemplo de que um povo, por maior que seja o seu analfabetismo e iliteracia, sabe sempre escolher o caminho da liberdade e da tolerância e delas fazer bom uso. O mesmo acontecerá com o uso da tecnologia.
sábado, 24 de abril de 2010
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